novembro 20, 2010

Adiando

As pessoas, a sala, fazem barulhos, assistem à TV, conversam, interagem. Ela está sozinha. Os barulhos lhe dão dor de cabeça, a TV lhe incomoda, as conversas lhe aborrecem, ela finge que interage. Está sozinha. Não lembra quando falou direito, pela última vez, com pai que tanto ama, com a mãe que tanto imita, com a irmã que tanto admira. Tenta falar algo sobre futebol, porque o pai adora quando ela faz isso, mas logo se arrepende porque o time dele não está muito bem no campeonato. Noites mal dormidas, más notícias na porcaria da televisão, dietas não cumpridas, pés doloridos e cheios de calos, problemas na família, o celular que não presta de jeito nenhum, as tintas e pincéis que ela nunca, nunca mais usou.
A verdade: ela é uma pessoa comum, tão hipócrita quanto qualquer ser humano normal, tão ladra de corações quanto toda mulher razoavelmente bonita e inteligente pode ser, orgulhosa sim, mas nunca deixou de ser generosa, compreensiva. Não tem medo de ninguém, a não ser de Deus, dos pais, daqueles que ama e daqueles que nem conhece. Se assusta ao saber de coisas que já considerava triviais e quase sempre vai muito além do que disse que iria.
Ela sabe que não adianta tentar dormir bem: há semanas vem tendo pesadelos, com a COISA. Não adianta rezar, ler, cobrir-se confortavelmente, encolher-se de frio, nem qualquer tipo estranho de ritual que todo mundo faz antes de dormir. A COISA está ali, em seus pensamentos e não quer deixá-la em paz.
A COISA: Começou há alguns meses. Sabe aquele problema chato, aquele do qual não adianta fugir? Ela está com um desses. Um problemão, coitada. Todo dia, ela tenta pensar numa solução não tão dolorosa e assim vem sendo desde abril, eu acho. Pra você ver como adiar as coisas é sempre um perigo!
Finalmente, uma solução se apresenta. Não era bem o que queria mas, estava fazendo qualquer negócio pra virar essa página da sua vida o quanto antes. O alívio que sentia era quase maior que ela. Que desperdício! Por que não pensou nisso antes? Quantas noites insones, aulas perdidas, confidências inúteis! Pela janela, pôs-se a observar aquela nuvem roxa. Meia hora atrás, ela ainda estava pequenina, insignificante. Como cresceu tanto em tão pouco tempo! Assim era aquele problema. Ela precisava acabar com ele. Aquela nuvem estava escondendo a lua e deixando a noite mais escura... Aquele problema estava lhe tirando o sono e sugando sua alegria...
O PROBLEMA: Realmente tinha muito a ver com aquela nuvem. A diferença é que era muito maior. A nuvem logo transformou-se em chuva e passou. A COISA não faria nada de mal a ela, pelo menos não diretamente. Era com as pessoas que ela se preocupava. E tinha motivo para isso. Ela estava sozinha. E estava com medo.
Em sua cabeceira, um livro lido mais de cinco vezes. Como poderia ler outra coisa, se não conseguia se concentrar em nada. Este lhe ajudava a dormir e, como já tinha lido várias vezes, sabia praticamente todas as falas, de modo que não era uma leitura desperdiçada. De repente, a leitura mecânica, robótica deu lugar a uma leitura sentida, pois as palavras que leu foram tão úteis, tão significativas, tão atuais, tão perfeitas, que pareciam ter aparecido como uma ajuda. Quem foi que disse que os livros não são amigos?
As palavras:
" Hercule Poirot sentia-se morbidamente consciente disso. Sempre fora um homem acostumado a ter uma boa impressão de si mesmo. Afinal ele era, realmente, superior à maioria dos homens em muitas coisas. Naquele momento, porém, sentia-se incapaz de qualquer sentimento de superioridade: era um mortal como qualquer outro, apavorado diante da cadeira do dentista. "
               

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