setembro 28, 2010

A Foto

Ele estava usando aquela camisa marrom que eu dei em seu último aniversário. De algum modo, sei que foi deliberadamente pra me atingir, pra me remeter àqueles anos em que eu poderia morrer se não o visse. E aquele boné horroroso que eu tanto odiava também estava ali pra me atacar, como quem diz: “Não adianta, nosso caso (dele com o seu dono, é claro) é eterno.” Eu odiava aquele boné porque ele me impedia de olhar nos olhos dele, e escondia o sinal de nascença em forma de flor, ironicamente afeminado pra alguém tão machão e tosco. Eu poderia jurar que aquele velho ar de deboche permanecia no sorriso amarelo que ele me deu, meio que pra se desculpar pelo atraso, meio que pra me seduzir, mas seu charme já não surtia tanto efeito.
“Estou cansado”, ele disse. “Vamos sentar”.
Mas eu ainda estava ali, olhando e pensando como, no fundo, o tempo não havia dissolvido nada. Minha memória foi puxando, um a um, todos os ecos do passado que ainda rondavam nós dois. Dissolvi num instante quaisquer expectativas que pudesse ter, e de repente me vi dizendo: “Estou bem de pé.” Ele, é claro, levantou-se irritado, porque eu sempre fazia o que ele queria; como ousava me rebelar agora? Não passou pela sua cabeça sempre tão egoísta que eu só fazia isso porque o amava e agora... Bem, as coisas eram, pelo menos, um pouco diferentes.
“E aí– ele começou – vais me desculpar ou não?” Com um olhar pedante e forçosamente subordinado, foi tudo o que ele conseguiu dizer. Um sorriso quase me escapa dos lábios, era tão fácil pedir desculpas que eu quase ri daquela tentativa débil que praticamente exigia desculpas. Quase ri porque essa mesma tentativa funcionou várias vezes e por mais que eu dissesse que agora, as coisas eram diferentes, ele insistia na tática de antes. Quase ri daquela teimosia inútil dele! Quase. Foi por pouco. Mas eu não ri. Em vez disso, tentei me concentrar em tudo o que tinha pra dizer. Olhei várias vezes pros lados, como que à procura de alguma coisa que me fizesse ganhar tempo. Disse apenas “Estás desculpado.”
Eu dissera apenas isto, mas ele entendeu (ou quis entender) muito mais. Como se eu tivesse dito que queria tê-lo novamente, abriu os braços e procurou minha boca. Afastei-me depressa, com um ar reticente, que eu esperava que o dissesse que aquela conversa terminava ali. Com uma naturalidade forçada, ele deu de ombros, como quem pouco se importa, mas como quem percebe, afinal de contas, que o jogo não está ganho. Tentou, então, mudar pra um assunto mais leve. “Já falaste com a Karla?” Balancei a cabeça. Ele sabia que não, que eu nem sabia onde a minha amiga estava. “Ela perguntou por ti. Ta lá atrás.” Dei as costas e fui dar um abraço na Karla, dar um oi, acima de tudo porque fiquei maravilhada em ter outra coisa pra fazer que não insistir naquela conversa dolorida. “Eu vou lá falar com ela, então. Falo contigo mais tarde.”
A verdade era que eu não queria mais falar com ele. Nem agora, nem mais tarde. Tenho certeza que ele percebeu o indisfarçável alívio na minha voz. Fiz de conta que não vi e saí. Tentou várias vezes me chamar, mas eu estava conversando animadamente, tive uma oportunidade de adiar aquele diálogo e me agarrei a ela. Como se percebesse isso, ele entrou na casa e, quando voltou, trazia um pedaço do meu passado na mão. Colocou-o na minha frente e disse: “Por favor.”
Involuntariamente fui tomada por aquela paralisia ridícula que eu sentia quando lembrava de como éramos felizes. Peguei o porta-retrato e olhei pra imagem à minha frente: Um casal apaixonado dentro do carro, sorrindo para a câmera. Tenho quase certeza que a Karlinha que bateu essa foto, num daqueles dias em que ele me ensinava a dirigir. Nunca me livraria dele completamente, é fato. Não percebi como as coisas aconteceram exatamente, eu nunca quis fazer aquilo. Sem querer, o porta-retrato despencou dos meus dedos, frios e duros e foi parar no chão. O vidro quebrado reluzia aos nossos pés e, para os poucos amigos que estavam ali por perto, pareceu que foi de propósito. Mas eu nunca faria isso com o nosso amor, mesmo se deixasse de ser amor.
Sorri, a despeito dos olhares de acusação, mas não pude encará-lo. Ele estava pasmado. Desejei, com toda a minha força, não ter feito aquilo. Mas não pude, obviamente, voltar atrás. Tive que encará-lo, então. Naqueles olhos que me eram sempre tão confiantes, vi pela primeira ou segunda vez o brilho de lágrimas. Meus olhos também molharam meu rosto e afinal me enfureci. Será que ele me achava tão infantil pra acreditar que eu quebraria um porta-retrato, aquele porta-retrato, sem remorso nenhum? Bem, se ele me achava infantil, ia ter um motivo para isso. Bati a porta atrás de mim, com bastante barulho porque queria chamar atenção. Queria fugir daqueles cacos reluzentes que me fitavam da lajota, me enchendo de culpa. Queria que ele corresse ao meu encontro me pedindo ou me exigindo desculpas.
Teimoso, como sempre, ele não foi. Fingiu não perceber o que eu queria. Tratou-me com desprezo total. Pensei ter ouvido o som da nossa foto sendo rasgada ao meio, imaginei inúmeras cenas dramáticas em um só minuto. Tolice. Não seria tudo mais fácil se eu fosse lá e dissesse que não fiz por mal? Nunca pensei que terminaríamos desse jeito, mas assim foi. Abri a porta pra sair, mas ele entrou. Eu sabia que ele já queria esse término há algum tempo, mesmo que fingisse que não. Por muito tempo, eu sorri, quando por dentro tinha raiva. Eu era tolerante quando, no fundo, o achava ridículo.
Contrariando tudo isso, ele me abraçou e disse que entendia, que o nosso amor tinha se transformado em outra coisa. Falou até que eu era importante pra ele! Eu retribuí os carinhos e, pela primeira vez, nós nos entendemos perfeitamente. Eu pedi desculpas e ele reconheceu que eu tinha direito a errar também, depois de tanto tempo me fazendo de perfeita. Sorrimos. Então, agora, estava tudo em paz. Não haveria mais brigas, cenas, choros. Mas antes tinha a foto. Tomei coragem e voltei para juntar os cacos. Percebi que ele veio junto. Estranho, mas o casal da foto olhava pra gente sem entender. O que será que aconteceu com nós dois? O que aconteceu com eles? O porta-retrato se quebrou em cacos. Tal qual nosso amor.

2 comentários:

  1. Me pareceu tu falando de ti mesma, sei que não és triste,mas, me parece triste.

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  2. Bem, quando a gente escreve um texto, é inevitável não se colocar um pouco nele. Mas vale lembrar: o texto é fictício. O que tem de mim, de verdade, só eu sei.

    ;)

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